23 de dezembro de 2010

carta ao pai natal

há cerca de 20 anos atrás eu habitava este mesmo espaço e esperava ansiosamente o dia seguinte. maravilhava-me com a variedade de cores, com os novos sons, com o cheiro da canela e o calor mais quente da minha cama. fazia pequenas descobertas a cada segundo e sonhava muito com viver. queimava os dedos na cera derretida das velas e não doía. comia o chocolate negro dos mon cherri, ainda com um leve travo a licor, e desempacotava os finos after eight que se assemelhavam aos slides que a professora passava na máquina de projectar lá na escola. pedia um microscópio, uma câmara fotográfica, um biberon de brincar dos que pareciam ter leite a sério, um livro muito grande de histórias de gnomos. queria andar de avião, deixar de confundir o 2 e o A, ter um peão como os dos meninos da terra da avó e um irmão pequenino. gostava dos gatos, tinha medo dos cães, tentava desenhar pinguins em cadernos A5 de folhas finas e tinha cágados que morriam de ano a ano. via episódios de ficheiros secretos com a cara semi-coberta por almofadas, sonhava em ter um marido como o david duchovny e em usar uma gabardine e saia travada como a dana scully. acreditava em extra-terrestres, nos potes de ouro do outro lado do arco-íris e na sorte dos trevos de quatro folhas. pedia desejos quando via traçados de aviões no céu, tentava cantar simon & gurfunkel e queria ser loira como a vocalista dos abba. roubava as revistas da la redoute à minha mãe e recortava as mulheres bonitas. tinha pijamas de corpo inteiro e pantufas de peluche. dormia numa cama gigante e era sonâmbula. não percebia porque tinha de levar vacinas e ia tentar perceber o motivo nas enciclopédias de medicina do armário da sala. achava impossível ter estômago, e coração e só acreditei que tinha mesmo pulmões quando vi o meu primeiro raio-x. queria ser pediatra para ser mais bonita que a minha pediatra, e usar no bolso uma pregadeira em forma de gato ao invés de uma abelha que não se parecia em nada com a maia. achava que a heidi era uma menina de verdade. gostava de viajar de comboio e achava o metro muito esquisito. enjoava a andar de carro e a ouvir rádio e achava que o sol brilhava mesmo mais no rossio de lisboa. trincava pega-monstros, inventava dezenas de utilidades para gastar cola UHU e fazia plantação de feijões em copos de iogurte com algodão. não chegava à prateleira de cima do frigorífico e não conseguia dizer frigorífico. gostava da chuva e do vento e tinha um guarda-chuva transparente e uma capa verde como o sapo cocas. emocionava-me com os dinossauros e com o bolero de ravel, com o anúncio do ajax e a carmen do bizet e com a carmina burana de orff e o anúncio do old spice. falava com o mar, com as árvores, e tentava falar com os passarinhos como o jardineiro d'"o jardim secreto". não percebia muito bem o que era poesia, mas gostava mais desses livros com poucas letras e menos páginas do que os outros. portugal era mais ou menos perto da alemanha e ao lado das gomas haribo de espanha. 100 escudos eram uma fortuna e eu partia os mealheiros sempre antes de os encher. indignava-me quando não me deixavam entrar na makro e não gostava de ficar sozinha no carro. contava todos os carros brancos que via na viagem viseu-lisboa, comia chicletes da caixa amarela, tinha a certeza de que a minha mãe era a mais cheirosa do mundo e gostava de magia.

pai natal, este ano quero ter cinco anos outra vez.

3 comentários:

  1. brilhante exercício de nostalgia, ingenuidade infantil e saudade.

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  2. Cláudia,

    que bonito texto. Eu também tenho saudades de ser pequenino, e sobretudo saudades de sonhar, e saudades de os problemas estarem sempre tão longe de mim que eu nem sequer devia pensar neles...
    ...Beijo-te

    NaLua

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  3. Quero notícias tuas Cláudia menina. Tenho saudades do seu sorriso *

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